quinta-feira, setembro 21, 2006


Às vezes a nossa mente é o nosso maior juíz. Quando as coisas corriam mal, o Paulo gostava de se refugiar no seu mundo interior, aquele que ele só uma vez partilhara a sério e que havia decidido nunca mais o fazer.
Neste mundo, o Paulo era o maior, vivia numa mansão com piscina. Tinha muitas namoradas, nenhuma séria, apenas gajas boas com quem curtia e tinham que estar sempre a mudar para ele não se fartar, um iate que usava para viajar à volta do mundo. Qual empresário de sucesso, Paulo era dono de empresas mas apenas as visitava para reuniões de administração, ou quando não tinha nada para fazer.
Apesar disso, o maior sonho do Paulo era ser feliz com a sua filha. Se para concretizar todos os outros sonhos apenas dependia de trabalhar e saber aproveitar as oportunidades que a vida vai proporcionando de vez em quando, a verdade é que para ser feliz com a Joana, dependia sempre da Mariana e esta odiava o Paulo.
A Mariana tinha conseguido obter a custódia exclusiva da Joana, porque à data o Paulo andava com problemas que o advogado soube explorar e o consideraram com inapto para ser pai.
Paulo decidiu então endireitar a sua vida, mas a verdade é que não estava a ser fácil. O próprio advogado já lhe tinha transmitido que dificilmente ele poderia inverter a situação enquanto não aceitasse fazer mudanças radicais na sua vida e mesmo então dependeria sempre da boa-vontade do colectivo de juízes que nestes casos raramente existia.
Paulo conhecera entretanto alguns pais separados, que mesmo tendo as condições ideais para criarem os seus filhos, alguns deles condições muito melhores que as mães e não só financeiramente e mesmo assim os tribunais lixavam-nos sempre. E se as mães não tivessem boa vontade, então podiam protestar e litigar tudo o que quisessem que mesmo assim não conseguiam estar algum tempo significativo com os filhos. No tribunais de menores, só a palavra da mãe conta, mesmo que ela não tenha palavra.
À noite antes de adormecer e quando estava à porta do seu mundo, eis que o porteiro lhe dizia: "Quem és tu ?"
-"Eu sou o Paulo" - respondia intimidado pelas provextas barbas e voz cavernosa
"O Paulo ? Já sei, aquele que abandonou a filha à sua sorte. Podes disfrutar de tudo o que quiseres, mas o que fizeste perseguir-te-á para sempre."
"Mas como posso eu mudar isso ?" - quase que suplicava o Paulo
"Mudar ? MUDAR ??? AHAHAHAH !!!" - ria sonora e alarvemente o porteiro - "Nunca poderás mudar o que fizeste. Quanto muito podes tentar mudar a situação actual, mas o passado ninguém muda."
Como já sabia o que aí vinha, o Paulo limitou-se a ficar cabisbaixo enquanto o porteiro o despachava - "Vá entra lá que eu não tenho tempo para ficar aqui na conversa fiada." - Na verdade, este porteiro nada mais fazia, mas queria transmitir a imagem de quem é demasiado importante para perder tempo com pessoas como o Paulo.
Na verdade só uma retorcida mente podia criar um personagem tão tortuoso.


Sem gelo, copo largo. Afinal o bourbon é só para duros.
Ao contrário do whisky que é feito de cevada ou de malte, o bourbon é destilado a partir do arroz. O sabor acaba por ser mais áspero, quiçá mesmo mais intenso, por certo de melhor qualidade que a maioria das zurrapas que são servidas como escocesas, embora a sua proveniência deva ser de Sacavém.
A verdade é quem se habitua a coisas boas, dificilmente tolera voltar para as más. Para estragar o prazer com imitações baratas, é preferível não ter, não fazer ou mesmo não ser.
Mas antes do hábito tem que haver a iniciação, a educação, o aprender a disfrutar do que é bom. A verdade é que à semelhança dos puros, também os borbouns, os maltes, os irlandeses, ou os escoceses velhos, requerem aprendizagem e treino. Beber qualquer um bebe, fumar qualquer um fuma, a verdade é que presentear o palato e presentear os outros sentidos não é para qualquer um. À semelhança de um bom carro, ou de uma boa mulher, o prazer de beber apenas se revela na sua plenitude para quem sabe perder-se do óbvio e superficial.
O Paulo era um apreciador dos prazeres da vida, mas sentia-se demasiado deprimido para sentir o néctar que escorria no copo.

terça-feira, setembro 19, 2006


"Marian..." - balbuciou o Paulo ao entrar no Casino.
A morena que se cruzou no seu caminho, olhou-o de relance e continuou a andar. O Paulo sentiu o chão a desabar sobre os seus pés, enquanto o Daniel começava a encher a máquina de moedas. O amor da vida do Paulo mais uma vez saía de cena e ele mais uma vez ficava sozinho. Aos 36 anos, Paulo vivia sozinho e segundo um psicólogo que tinha consultado umas quantas vezes, dificilmente iria mudar enquanto não conseguisse resolver os seus problemas com as mulheres.
Todas as mulheres da sua vida até aos 30 anos apenas lhe tinham trazido dor e sofrimento, desilusões e desgostos. Por isso, o Paulo tinha um ressentimento enorme para com as mulheres, apenas as queria para ter prazer e de preferência que lhe fizessem a comida, pois embora se safasse na cozinha, o Paulo tinha muito pouca paciência para fazer quaisquer tarefas domésticas. A Mariana, com quem vivera três anos e de quem tinha tido uma filha era o expoente máximo da dor. Uma dor que o Paulo nunca conseguira ultrapassar.
"KAMON !!!" - gritou efusivamente o Daniel - "Sequência Real. KAMON !!!"
"Boa, estás cheio de sorte."
"Cheio de sorte ??? Estás a brincar ? I'm on fire, baby!" - continuou o Daniel enquanto dançava à volta da máquina. - "Que tens ? O que é foi ?"
"Pareceu-me ter visto a Mariana."
"Outra vez ? Ainda continuas com isso ? Já te disse para largares esse assunto de vez. Tens que seguir em frente, eu sei que é difícil mas tens que continuar."
As lágrimas começaram a escorrer pela face do Paulo - "Eu sei. Mas não consigo."
"F*da-se! Uma pessoa aqui cheio de sorte e tu aí todo deprimido. Vamos mas é beber um."
O Daniel chamou o empregado e pediu 2 Jack Daniels sem gelo. - "Vais ver que ficas logo melhor."

segunda-feira, setembro 18, 2006


Os km's sucediam-se a um ritmo inacreditável. Como sempre em excesso de velocidade, não porque houvesse pressa, mas porque na auto-estrada não fazia sentido conduzir a 120, pois esse era o limite que tinham imposto na década de 70 quando os automóveis pouca ou nenhuma segurança tinham e quando a maioria pouco passava dos 120. Hoje em dia qualquer comercial atinge os 160/170, quanto mais um coupé da baviera.
O dia tinha sido longo e Daniel não podia esperar por chegar ao destino.
Figueira, que saudades tinha daquelas tardes com os amigos a beber cervejas fresquinhas enquanto limpava a vista com as miúdas de Buarcos. Belas tardes e melhores noites aí tinha passado, mas agora o objectivo era outro. Em vinte minutos começaria a procurar lugar para estacionar, de preferência mais perto possível do casino. Sempre se sentira um bocado claustrofóbico naquele espaço demasiado acanhado. Mas na semana passada ganhara 500 euros e queria prolongar essa maré de sorte.
Daniel não se considerava viciado, mas aos olhos de qualquer outra pessoa, não viciada claro está, era clara a compulsão de Daniel. Fazia para o próximo mês seis anos que tinha parado de jogar, pois perdera quase 10.000 euros ao jogo e muita falta lhe faziam agora.
"Sentes-te com sorte ? Are you feeling lucky ? Punk !" - perguntou Paulo enquanto acendia um marlboro tradicional (Paulo não gostava de coisas light).
"Estou cá com uma fezada. Acho que é hoje que que me sai el gordo" - retorquiu o Daniel muito convicto.
Paulo olhou para o Daniel e passou-lhe o cigarro enquanto fazia contas de cabeça.
"Sabes uma coisa?" - perguntou o Paulo ficando em silêncio.
"Se não me disseres não consigo adivinhar, pois não estou na tua cabeça, certo ?"
"Deixa para lá, não é nada de importante." - disse o Paulo que se arrependeu do que ia dizer.
"Que raio de mania tens tu. Começas as coisas e depois calas-te." - atirou o Daniel começando a ficar irritado, o que se notava por a veia no lado direito da testa ficar saliente - "Sabes que eu odeia essa merda e continuas a fazê-lo. Se quiseres diz logo, agora não te ponhas cá com merdas."
O Paulo que já sabia como as coisas iam descambar limitou-se a mencionar que estava a pensar alto e procurou um assunto qualquer que tivessem hoje para justificar a menção.
"Estou a ficar cheio da fome. O que é que vamos comer ? Paramos no marquês ?" - Paulo optou pela comida como sendo um assunto neutro, mas enganou-se.
"Achas ? Temos é que ganhar a guita e depois logo paramos numa estação de serviço."
"Ok, vamos ver é se arranjamos um lugar perto do casino." - disse o Paulo para matar a conversa, pois estavam a entrar na Figueira e não valia a pena lutar contra a compulsão ...